De malas prontas para gravar a sétima temporada do programa de viagens “Anota Aí”, do canal pago Multishow, a apresentadora Titi Müller, 33, tira da bagagem o repertório feminista que aprendeu numa casa com quatro mulheres, além do pai, em Porto Alegre, para denunciar toda forma de violência contra a mulher: “Verbalize de alguma forma!”, diz ela, que já sofreu abuso.
Diz que jamais pensou em recuar no discurso, nem quando foi atacada por chamar as letras do DJ israelense Borgore de “totalmente machistas, misóginas e babacas” no festival Lollapallooza, em 2017. E insiste que foi totalmente por acaso que virou notícia no último Rock in Rio ao anunciar que o público gritava pela cantora Anitta, quando, na verdade, seu microfone reproduzia os fãs xingando em alto e bom som o presidente Jair Bolsonaro (PSL). A cena se disseminou pelas redes sociais e chegou a ser exibida no Fantástico. “Muitos não gostaram, mas, para muitos, lavou a alma.”
Na TV desde 2008, quando, aos 22 anos, começou a falar de sexo no “Podsex” da MTV, ela fala que somente há dois anos passou a ter uma relação boa com a comida e a amar o corpo. Titi teve anorexia nervosa e, com 1,70 m, chegou a pesar 40 quilos. “Tive uma relação muito tóxica com a balança.” Um dos maiores incentivadores, ela diz, é o marido, o músico Tomás Bertoni, da banda Scalene, com quem se uniu numa cerimônia religiosa neste ano.
Como foi seu encontro com o feminismo? Minha mãe é muito feminista. E é doido porque é uma família bem típica do Sul do Brasil. Meu pai criou ali as três filhas com muita garra mesmo. Minha mãe ficou mais em casa com a gente, sempre nos enchendo de um repertório de literatura, filmes e conversas sobre todos os assuntos. Depois que a Tainá [Müller, atriz e irmã da apresentadora] entrou na faculdade de comunicação, lembro que rolou um despertar muito grande da família inteira. Todas as figuras femininas ali em casa são muito fortes. A gente sempre impôs muito a nossa vontade, nossa personalidade. Acho que meu pai teve que torcer o braço logo cedo, já com minha mãe. Fui uma adolescente bem livre. E entendi o que é o feminismo mesmo ao longo do processo porque estamos até hoje entendendo e discutindo isso.
Quando você decidiu trabalhar com o público, já tinha a ideia de aproveitar o espaço para denunciar o machismo? Para mim foi sempre muito natural falar sobre certas coisas na mesa do bar, na faculdade, em casa, no ambiente de trabalho, quando atuava como designer. E, quando comecei a trabalhar na TV, foi, na verdade orgânico, já que falava sobre sexo. Era uma menina de 20 e poucos anos. Lógico que foi até transgressor, de alguma forma, colocar aquelas duas gurias [ela apresentava o ‘Podsex’ junto com Kika Martinez] ali falando sobre sexo daquela forma. Mas não me via, na época, militando. Estava apenas sendo eu mesma. Não tinha noção da repercussão, do quanto estava sendo influenciadora já.
Recentemente, durante o Rock In Rio, você exibiu o público xingando o presidente Bolsonaro ao vivo. E, no Festival Festeja, você brincou com a música de Leo Santana “Vai dar PT”, dizendo que era uma profecia para 2022. Sofreu represália do canal por causa desses atos? Nunca passou pela minha cabeça, e dentro do canal também, que sofreria nenhum tipo de represália por parte de ninguém. Tenho muita liberdade no canal, e a minha censura é o bom senso próprio. O caso do “Vai dar PT” talvez poderia ter soado meio que campanha, e não foi porque, falando super de boa, eu nem sou eleitora do PT. Foi uma brincadeira. Voto no PT em último caso. Fui filiada ao PT de Sapuaica do Sul quando tinha 13 anos porque a mãe da minha amiga era candidata à prefeita e eu participava das ações da juventude petista, ia em comunidade. Era uma criança de 13 anos. Me desfiliei um ano depois.
Você avisa à direção do canal o que fará no ar? Não! Na verdade, o Multishow não sabe o que eu vou falar, mas espera que eu fale algumas coisas, entendeu? Acho que o canal sabe que nunca falarei nada que deponha contra a emissora em que eu trabalho. Mas se espera que, quando vai tocar um DJ machista escancarado e que construiu a carreira em cima disso, eu vá falar sobre o assunto. Na verdade, acho que todos os apresentadores teriam falado, talvez pontuado alguma coisa de outra forma. É a postura que se espera ali de boa parte do elenco [de apresentadores]. Mas, desde o Lolla, as coisas que eu falo repercutem de uma outra forma.
No episódio do Rock in Rio, você não sabia o que o público estava gritando? A gente nem se ligou. Nem por uma sombra sabia que ia repercutir daquela forma, ir para os “trending topics”. Segundos antes de entrar no ar, estavam gritando pela Anitta. Comecei a falar e obviamente mudaram. Foi muito rápido. Eu não sabia.
Colocar o microfone pra galera é um pouco imprevisível mas, dentro do que a gente está vivendo e num festival com 100 mil pessoas todos os dias, não achei que fosse representar um negócio que parece que estava engasgado em tanta gente. Muitos não gostaram, mas, para muitos, lavou a alma.
Depois que você revelou ter passado por um abuso na adolescência e também após o episódio do Lollapalooza, muitas mulheres passaram a enxergar em você uma voz em defesa do feminismo. Elas te procuram para conversar, fazer denúncias? Depois do vídeo [em que falou sobre o abuso, em 2017], eu abri muito e virei um para-raios. Queria muito ajudar as mulheres. Até dei um tempo de roda de conversa, de debate sobre feminismo, de literatura feminista porque começou a entrar em assuntos muito delicados, pessoais. Estava só na Rebecca Solnit, Djamila Ribeiro, Angela Davis. A saúde mental da gente já não está muito fácil e, quando se está em um momento de trabalho e de superexposição surreal, piora. Em 2018, tive muito problema de saúde, sofri um acidente meio grave, tive uma fratura de clavícula, bati a cabeça, perdi a memória. Precisei dar uma respirada. Agora estou firme e forte.
Qual é a melhor forma de ajudar uma pessoa que passou pelo que você viveu? Falar sobre e da forma que der. Se falar publicamente vai ajudar, fale. Ou numa terapia, com sua irmã, sua melhor amiga, para pessoas em que tu confias.
Escreva num diário, verbalize de alguma forma isso para entender o que tu sentes em relação ao que aconteceu. Algumas mulheres têm denunciado a figura do esquerdomacho entre elas, do homem que se engaja na causa feminista, mas que, na verdade, está querendo surfar na onda e acaba reproduzindo mais machismo. Tem encontrado muito com esse tipo? Opa, temos, né, amiga? É só olhar para o seu lado. Mas acho que temos que levar com mais leveza esse assunto de esquerdomacho. Todo mundo tem o seu próprio repertório de cagadas ao longo da vida. Estamos todos indo para o mesmo lugar. Algumas pessoas estão vendadas, em volta de fumaça, mas o objetivo é o mesmo para todo mundo, mesmo que a pessoa não saiba. O que falta é empatia. E a gente também aprendeu a ficar vacinada quando vê muito homem se apropriando de um discurso de feminismo.
Você já teve anorexia nervosa. Como é a relação com a alimentação hoje? Está tão boa! Eu realmente parei de me pesar porque tive uma relação muito tóxica com a balança. Só me peso quando vou ao médico. Acho que estou uns 14 quilos mais pesada do que há oito anos. E nunca me senti tão linda. De verdade. Estou me achando tipo foda, com os peitos lindos, uma bunda linda. Amando tudo. Sabe aquele vasinho que tu olha assim e fala: “Nossa, esse vasinho tem história?” E é muito louco porque eu era “noiada” com tudo. Não ficava com o pé descalço porque achava que era feio. Agora sinto que dá para ousar mais, até no figurino. Comecei a colocar decotão nos últimos dois anos. Se der um Google, você vai ver que estou sempre meio coberta, meio infantilizada. Agora sinto que dá para ousar mais, até no figurino. Comecei a colocar decotão nos últimos dois anos. Se der um Google, você vai ver que estou sempre meio coberta, meio infantilizada. Agora estou colocando tudo pra jogo.
Como foi essa virada de chave? Acho que o que me ajudou muito foi ter ao meu lado uma pessoa que entendeu que eu não tinha uma relação muito boa com a comida. E, quando se fala em distúrbio alimentar, a gente tem que tomar cuidado para o resto da vida. Não sei se daqui a cinco anos eu não vou entrar numa “noia”. Mas, nesses últimos dois anos, eu tenho um companheiro que entendeu muito cedo que a rotina de alimentação tem que ser uma festa, que cada quilo é comemorado. Foi quando comecei a botar pra jogo o que estava escondendo aqui embaixo do pano, porque estava engordando, melhorando a relação com a comida. Sou extremamente magra, tenho tipo 60 e poucos quilos e 1,71m. Mas pense que cheguei a pesar 44 quilos.
Fonte: Uol