O que eles chamam de amor, nós chamamos de trabalho não pago, diz Silvia Federici

“Eles abriram as portas das fábricas, dos escritórios, e agora podemos trabalhar como trabalhadoras baratas, mas tradicionalmente o casamento era a solução. A mulher tem de achar um homem que traga o salário para casa”, diz a filósofa Silvia Federici, para quem o trabalho doméstico está no centro da discussão sobre igualdade entre mulheres.

A autora participou, nos anos 1970, do movimento feminista internacional Wages for Housework (salários pelo trabalho doméstico) —e em 1975 lançou livro de mesmo nome—, que defendia que as tarefas realizadas dentro de casa deveriam ser remuneradas. A ideia era chamar a atenção para o fato de esses afazeres serem uma forma de trabalho, embora a sociedade não os veja dessa forma.

Em 2004, Federici lançou o livro “Calibã e a Bruxa”, que marcou os estudos feministas e de história ao mostrar como a caça às bruxas na Europa foi necessária ao estabelecimento do capitalismo, junto da expulsão dos camponeses com o cercamento das terras comuns, da exploração das colônias na América e do trabalho escravo.

Diferentemente de muitos dos clichês do feminismo que se estabeleceram com internet e redes sociais, Federici dá importância às tarefas domésticas, defende que a luta pelo direito ao aborto seja feita junto daquela pelo direito a ter filhos, critica o termo minoria e ataca a exploração da mulher como mão de obra barata.

Pensadora marxista, lançou neste ano, em francês, “Le Capitalisme Patriarcal” (o capitalismo patriarcal), no qual defende que o fim do sexismo não passa pela igualdade salarial de homens e mulheres ou pelo fim da discriminação, mas pela luta contra o capitalismo. Em “Mulheres e Caça às Bruxas”, lançado em setembro pela Boitempo, ela retoma, em ensaios, algumas das questões de “Calibã e a Bruxa”.

Federici faz conferência na terça (15), no Sesc Pinheiros, em São Paulo, com ingressos esgotados, no evento Democracia em Colapso?, que tem ainda as feministas negras Angela Davis e Patricia Hill Collins na programação.

O que muda quando as mulheres saem para o mercado de trabalho e pagam outras mulheres para fazerem o trabalho doméstico em suas casas? 

É uma longa cadeia. O trabalho doméstico vai de uma mulher para outra mulher, ou para uma criança, uma filha. Uma mulher deixa o seu filho com outra mulher ou com sua mãe, e a mãe tem de seguir trabalhando. Mulheres nunca se aposentam. Quando você emprega outra mulher imediatamente há uma relação de poder. A patroa fala “estou atrasada, pode ficar mais meia hora?” ou “é minha filha, pode ficar um pouco mais?”, e sempre tem uma chantagem emocional quando se trabalha para outra mulher, sobretudo quando estão lidando com mulheres muito pobres.

A solução é um movimento de mulheres que conecte as que trabalham em casa por dinheiro ou as que o fazem sem dinheiro, para mostrar como o trabalho reprodutivo é trapaceado nesta sociedade.

A desvalorização do trabalho doméstico afeta ambas: a que faz sem pagamento e a que faz por pagamento. Então temos que lutar juntas. Se não, cria-se toda uma relação de poder e mais desigualdade entre as mulheres.

Vem caindo o número de donas de casa. No Brasil, por exemplo, a parcela da população que se declarava dona de casa caiu de 19%, em 1993, para 7% neste ano. O que isso muda?

Eu não gosto do termo dona de casa, prefiro trabalhador doméstico. O fato de as mulheres dizerem que não são donas de casa significa que elas não são só donas de casa em tempo integral. No passado, havia uma grande quantidade de mulheres que trabalhavam a maior parte do tempo em casa, agora muitas estão trabalhando fora de casa, mas não pararam de fazer o trabalho doméstico. Elas o fazem à noite, de manhã cedo, aos domingos. Há muito trabalho doméstico, trabalho reprodutivo.

Temos que questionar as estatísticas. A questão do trabalho doméstico é tão dramática hoje como era nos anos 1970, porque as mulheres agora não têm tempo. Elas trabalham o tempo todo. Trabalham cuidando de todo mundo, da casa, ajudando as pessoas a viver e ajudando as pessoas a morrer.
Não há tempo para descansar, para a saúde, e o dinheiro é pouco. Os trabalhos que as mulheres conseguem pagam muito pouco. E quando chegam em casa, ainda têm mais trabalho, sobretudo se têm filhos. Como isso afeta as vidas das mulheres? Quem se beneficia disso?

Quem? 

Todos os empregadores se beneficiam disso e não nos dão nada. Há uma grande diferença entre fazer cadeiras, sapatos ou carros, e o trabalho de fazer crianças, de criar crianças.

Com a desvalorização do trabalho doméstico, a mulher tem de arranjar um outro emprego, ou tem de depender de um homem.

Os homens também são explorados neste mundo, mas pelo menos o trabalho deles é reconhecido como
trabalho, eles têm alguns direitos como trabalhadores.

Nós somos as fábricas de trabalhadores. Da comida às roupas e o trabalho emocional. E o sexo também é parte do trabalho doméstico.

Não importa o quão cansada esteja, se é casada e seu marido quer fazer sexo, muitas de nós faremos
sexo. Se dissermos não, muitas vezes eles nos obrigam.

Quantas mulheres têm o poder de dizer “eu não tive um orgasmo”? A mulher tem de fazer sexo mesmo que esteja cansada e tem de fingir que está gostando. Milhões de mulheres mentem porque o homem quer ficar satisfeito.

As mulheres da minha geração, sempre mentimos [sobre orgasmo], queríamos que acabasse logo, tínhamos grandes expectativas, mas a realidade não era o que esperávamos. O sexo é parte do trabalho, ele se torna uma tarefa. Dar prazer ao homem, fazê-lo feliz. O que eles chamam de amor, nós chamamos de trabalho não pago.

Fonte: Folha de S. Paulo

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